Doutor é quem tem doutorado?

29 de junho de 2017
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Como um costume, basta que qualquer pessoa veja um profissional do Direito para chamá-lo de doutor. Mas doutor é quem tem doutorado, não? Sim e não. No Brasil, a história – ou sua invenção – faz com que o termo seja utilizado em várias oportunidades que não são ligadas ao alto grau na academia.

Para acabar com esse “disse-me-disse” de uma vez por todas, preparamos o post de hoje. Confira.

A história do “doutor” no Brasil

O brasileiro é muito criativo, disso todos temos certeza. Mas é difícil imaginar que ele conseguiu criar uma história para justificar o uso do “doutor” pelos profissionais de Direito, em especial pelos advogados. Pois conseguiu. E não só criou uma, mas duas histórias. São duas versões diferentes acerca do termo, duas mentiras, mas, como diz o ditado, uma mentira contada muitas vezes se torna verdade.

Para desmistificar o uso do termo e provar que doutor é quem faz doutorado, vamos à tradição criada.

Capítulo I: Dona Maria, a Louca

Conta a história que Dona Maria, a Pia ou a Louca (como era mais conhecida), baixou um alvará em que determinava que os advogados portugueses deveriam ser tratados como doutores nas Cortes brasileiras. Esse é o fato contado.

Porém, o raciocínio de conectá-lo ao costume de que os advogados brasileiros devem ser chamados por doutores não faz muito sentido. Em um primeiro momento, pode-se questionar, inclusive, o peso desse alvará, realizado por pessoa que, à época, era tida como louca, portadora de doença mental. Portanto, Dona Maria não poderia editar um ato jurídico válido por ter suas capacidades mentais reduzidas.

Em segundo lugar, a Constituição de 1824 não previa o “alvará” como ato normativo. Ou seja, qualquer documento que ela tenha editado, não tinha força jurídica para obrigar ou desobrigar algo.

Desconsiderando o estado mental de Dona Maria, o Professor Doutor Marco Antônio Ribeiro Tura, jurista e membro vitalício do Ministério Público da União, afirma com toda a segurança que, após análise da coleção completa dos atos normativos desde a Colônia, tal alvará jamais existiu.

Acrescenta ainda que, mesmo se tivesse existido, o advento da República faria cair todos os modos de tratamento que não estavam consoantes. De acordo com o professor, a República exalta o mérito, motivo pelo qual muitos tratamentos de natureza nobiliárquica não possuem mais qualquer valor, a não ser o pessoal, como os brasões familiares de nobreza.

Por fim, acreditando que o alvará tivesse mesmo existido, é preciso se ater ao texto da norma. Do texto, devemos frisar que os advogados portugueses deveriam ser tratados como doutores perante as Cortes Brasileiras. Ou seja, o termo não se aplicaria a bacharel, membro do Ministério Público, juízes. Também não seria utilizado por advogados brasileiros ou por advogados portugueses fora da Corte. São muitos os “poréns”.

Capítulo II: Dom Pedro I

A Ordem dos Advogados do Brasil, percebendo a inconsistência da história de Dona Maria, pronunciou-se diversas vezes sobre o tema e encerrou o debate do uso do termo, posicionando-se favoravelmente à máxima “doutor é quem tem doutorado”.

Apesar da posição da Ordem, começou a ser propagada mais recentemente uma versão semelhante a do alvará de Dona Maria, mas, dessa vez, mudando o protagonista para Dom Pedro I (Dom Pedro IV em Portugal) e o ato normativo para decreto.

O enredo é exatamente o mesmo, e a mudança ocorreu apenas para revitalizar a história: Dom Pedro I decretou que os bacharéis dos cursos de ciências jurídicas e sociais no Brasil deveriam ser tratados como “doutores”.

Doutor é quem tem doutorado

O Professor Doutor Marco Antônio Ribeiro Tura, além de ter desvendado as mentiras contadas e reproduzidas acerca do termo “doutor”, fez uma análise interessante sobre sua aplicação no Direito.

A Lei nº 27, de 11 de agosto de 1827, criou os cursos jurídicos no Brasil e dispôs, no artigo 9º, que aqueles que frequentarem os 5 anos dos cursos e forem aprovados, conseguirão o grau de Bacharéis formados. O grau de Doutor será conferido àqueles que se habilitarem de acordo com os requisitos dispostos nos Estatutos das respectivas Faculdades de Direito, e só os que o obtiverem poderão ser escolhidos para Livre-Docente (pré-requisito para ser professor titular).

Atualmente, conforme o Manual de Redação da Presidência da República, apenas quem concluiu satisfatoriamente o curso acadêmico de doutorado deverá ser chamado de doutor – em outras palavras, o estudante que completou o terceiro ciclo do ensino superior, e não apenas a graduação. Doutor é um título acadêmico, e não um pronome de tratamento.

A Ordem dos Advogados do Brasil, inclusive, se posicionam frequentemente acerca do tema em suas decisões do Tribunal de Ética e Disciplina. E todas no mesmo sentido: “não pode e não deve exigir o tratamento de Doutor ou apresentar-se como tal aquele que não possua titulação acadêmica para tanto”. Doutor é quem faz doutorado, e ponto.

Os defensores do uso do “doutor”

Muitos profissionais do Direito se recusam a deixar de utilizar o termo, ainda que concordem com a máxima “doutor é quem tem doutorado”. Isso porque consideram que o costume, como fonte formal do direito (ainda que secundária), autoriza o uso pelos advogados (e médicos).

Um costume é um comportamento que se repete no tempo, um hábito praticado espontaneamente. Porém, por outro lado, no ordenamento jurídico brasileiro, o costume só será fonte para o direito se dele se extrair uma norma considerada válida pelo ordenamento jurídico, ou seja, que passe pelo processo legislativo.

A discussão acerca do “doutor” ainda é evidente no Brasil. Sua discussão, em muitos momentos, passa por uma análise socioeconômica. Muitos intelectuais discutem que o “doutor” é utilizado na sociedade brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica, não tendo sido estabelecida de forma inocente, mas como forma de dominância.

Independentemente disso, certo é que doutor é quem tem doutorado. E considerando que essa é uma titulação acadêmica, deixamos uma dica valiosa sobre os pronomes de tratamento no Direito: os membros da Magistratura e do Ministério Público são tratados por Excelência, ao passo que delegados e advogados públicos e privados têm o tratamento de Senhoria.

E você, como enxerga a questão do título de doutor? Conte pra gente pelos comentários e até a próxima.